Quando me convidam para falar da minha pesquisa sobre os impactos dos smartphones para saúde e envelhecimento, esclareço que não posso falar sobre todas as pessoas idosas. Ainda que faça comparações e generalizações com base em pesquisas sobre a velhice no Brasil e no mundo, meus dados etnográficos dizem respeito à perspectiva dos participantes da minha pesquisa de campo, moradores ou frequentadores de um bairro de classe média de São Paulo.
Por que contextualizar dados é importante? Frequentemente sou impactada por pesquisas que ressaltam grandes números de pessoas idosas que acessam redes sociais todos os dias, ou que fazem compras ou consomem músicas, filmes e séries online. Esses achados geralmente são comunicados assim “X% das pessoas idosas realizam a ação Y no âmbito online” quando deveriam ser comunicados assim “X% das pessoas idosas usuárias de internet realizam a ação Y no âmbito online”. Caso contrário, arrisca-se promover a ideia de que a velhice está conectada, quando apenas 43% são usuárias de internet no Brasil (como levantamento da TIC Domicílios 2022).
Ainda que essas ressalvas estejam nas notas de rodapé, elas se perdem quando esses dados são reproduzidos na mídia. Isso pode contribuir tanto para a idealização quanto para a estigmatização da velhice.
Estigma: idadismo baseado em dados?
Vou dar um exemplo da importância do rigor na comunicação de dados sobre a velhice conectada e seus impactos para o idadismo. Em 2019, foi divulgado estudo sobre Fake News no Facebook durante a eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos. Os pesquisadores identificaram que pessoas com 65 anos ou mais compartilharam 7 vezes mais Fake News que o grupo mais jovem. Ainda que tenham concluído que, entre todos os participantes, a prática de compartilhamento tenha sido rara e que o modelo de análise não pode estabelecer evidências causais acerca do compartilhamento de Fake News, variações da manchete “Pessoas Idosas Compartilham 7 vezes Mais Fake News” ganharam a mídia no Brasil e no mundo, contribuindo para o idadismo – como analiso no artigo “Can Older People Stop Sharing”, que tem Luiz Peres-Neto (Universitat Autònoma de Barcelona) como co-autor.
Idealização: podem os dados silenciar a velhice?
Não me refiro aqui ao pacto social de silêncio em torno da velhice como denunciado por Simone de Beauvoir. A autora elucida as condições de vida miseráveis reservadas às pessoas idosas em sua contemporaneidade, concluindo que abordar o tema da velhice seria confrontar a sociedade com uma situação precária a qual, mais cedo ou mais tarde, todos os indivíduos estariam sujeitos. Ademais, se pobreza e abandono eram os últimos retornos da vida em sociedade, o flagrante da precariedade da velhice seria a prova irrefutável de que a sociedade falhou como projeto de humanidade. Daí segue o silenciamento em torno da velhice que propõe.
Como pesquiso e trabalho com envelhecimento, minha bolha algorítmica me dá a sensação de que a velhice agora goza de certa visibilidade. Mas isso não descarta a possibilidade de seu silenciamento. Por exemplo, quando celebramos que X% das pessoas idosas usa redes sociais todos os dias, silenciamos todas as desigualdades socioeconômicas que contribuem para a realidade de que mais da metade delas ainda não tenham acesso à internet no Brasil (vou falar do impacto da taxa de analfabetismo para inclusão digital de pessoas idosas em um próximo post).
Os perigos acerca do silenciamento dos desafios e desigualdades da velhice não se restringem à adoção de tecnologia. Na mídia e na publicidade, como observado nos contextos norte americano e brasileiro, dá-se visibilidade a “heróis do envelhecimento” que exercitam seu potencial de consumo para combater os declínios e a dependência associada à velhice. Essa visibilidade pode operar na construção de um jeito correto de envelhecer, desconsiderando que a velhice é sempre fruto de uma negociação entre aquilo que se deve e se quer, mas também com aquilo que se pode.
Uma vez que essa negociação não se dá nas mesmas condições para todos aqueles que envelhecem, atentar para a visibilidade dada apenas a exemplos de envelhecimento construídos como bem-sucedidos é uma responsabilidade de nós que produzimos e compartilhamos dados sobre o envelhecimento.
[Imagem gerada por inteligência artificial]