Um dos mapeamentos feitos anualmente pela pesquisa TIC Domicílios é sobre o principal motivo declarado pelos entrevistados para nunca terem acessado a internet. Entre as respostas possíveis está a opção “Por falta de interesse”. Entre brasileiros com 60 anos ou mais, esse continua sendo o principal motivo declarado para nunca terem acessado a internet. Mais do que isso, esse percentual na faixa etária subiu de 37% para 42% entre 2019 e 2020. O dado parece inconsistente com o ano da pandemia, em que a internet se tornou tão importante por conta do isolamento social e da aceleração na digitalização de serviços fundamentais à cidadania. Então como explicar que a faixa etária mais vitimada pela COVID-19 tenha se mantido indiferente à internet com crescente desinteresse declarado pela rede?

Em primeiro lugar, é preciso entender que “falta de interesse” diz respeito a uma atitude frente a um objeto, neste caso, a internet. Entretanto, como sistematizam os pesquisadores John Hartwick e Henri Barki, atitude frente a um objeto não é necessariamente preditiva de comportamento. O comportamento resulta da influência de um conjunto de fatores. Além da atitude, ele é influenciado por variáveis demográficas, características de personalidade, crenças em relação ao objeto, contexto necessário à ação e variáveis situacionais.

Proponho que a pesquisa qualitativa seja aquela capaz de acessar, observar e entender essa complexidade. 

Durante etnografia realizada com idosos de classe média de São Paulo, que combinou observação participante e pesquisa em profundidade, observei que a falta de interesse relacionada à tecnologia é um mecanismo de defesa. Os participantes da pesquisa se sentem constrangidos em dizer que não sabem usar a internet e mais especificamente os smartphones, já que esse é o meio exclusivo de acesso de a maioria dos idosos brasileiros (64% em 2020). O constrangimento é potencializado ainda pelos filhos, impacientes, que insistem que os smartphones são intuitivos e que os pais deveriam aprender sozinhos. Quanto aos netos, eles resolvem, mas, como reclamam esses idosos, eles não ensinam como fazer.

Isso pode implicar uma dependência dos filhos e exacerbar as disputas intergeracionais por autoridade principalmente junto à “geração canguru”. Além disso, há a questão de que o conhecimento construído ao longo da vida profissional parece se perder quando o assunto é tecnologia. Nesse sentido, como observado também por Alfonso Otaegui em sua pesquisa com os idosos no Chile, esses idosos se sentem como se fossem “idiotas”, como se “tivessem que começar do zero” nessa fase da vida (veja entrevista aqui).

Há ainda a questão dos dispositivos e das interfaces.

Por um lado, esses idosos geralmente herdam seus dispositivos de parentes ou amigos. Esses dispositivos são defasados (o tempo médio que o brasileiro permanece com o mesmo smartphone é de 2 anos e 3 meses de acordo com pesquisa Mobile Time/Opinion Box), com problemas de capacidade de armazenamento e bateria. Por outro, como mapeado por Eron Rocha e Stephania Padovani, as interfaces mobile geralmente não consideram necessidades e declínios naturais do envelhecimento com relação à visão e à memória, por exemplo. E é preciso dizer que a adoção e aprendizado de smartphones por idosos ganha uma camada extra de estresse. O grupo etário é também frequentemente alvo de golpes cibernéticos (veja aqui levantamento da Febraban – Federação Brasileira de Bancos), além de vítima de assaltos. Como um participante da pesquisa definiu: “se você tem cabelo branco, já é um alvo”.

Resumindo, nada parece favorável à adoção de smartphones que poderia viabilizar o acesso das pessoas idosas à internet.

Mesmo que esses sejam fatores externos, elas interiorizam um sentimento de inabilidade, que resulta em baixa autoestima, também considerada uma das principais barreiras para adoção de tecnologias pelas gerações mais velhas no Estados Unidos (veja estudo Pew Research Center). Por conta disso, declarar não ter interesse em acessar a internet é menos constrangedor e uma possibilidade de manutenção da dignidade.

A falta de interesse também ganha nuances. Na mesma etnografia que conduzi em São Paulo, foi frequente que os idosos usuários de smartphones tivessem dificuldade de baixar novos aplicativos. Alguns participantes declararam que tinham “preguiça” ou “falta de tempo” para aprender. Por isso, solicitavam ajuda aos amigos. Entretanto, esses motivos disfarçavam o mesmo constrangimento que a “falta de interesse” dissimula.

Além de atuarem como “warm experts” (não profissionais que auxiliam na adoção e uso de tecnologia e com quem o novo usuário geralmente possui uma relação afetiva), os amigos conectados no WhatsApp também trabalham juntos transformando São Paulo em uma cidade inteligente para as pessoas idosas.

Entender o que a pessoa idosa quer dizer quando declara não ter interesse pela internet ilustra como a pesquisa qualitativa pode ajudar a compreender atitudes e comportamentos.

 

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity

 

 

Referências
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