É equivocado explicar a adoção ou não de tecnologias digitais por pessoas idosas a partir de suas idades cronológicas. Uma abordagem qualitativa rapidamente demonstrará que os usos, não-usos ou desusos que as pessoas idosas fazem com os recursos digitais à sua volta são produto complexo de variáveis culturais e sociodemográficas, mas não só. Para além de dispositivos e infraestrutura, acesso e habilidades digitais, suas práticas consideram suas escolhas, preferências e estratégias, bem como suas redes de apoio e histórias de vida, na negociação que fazem com os recursos que têm para dar conta do mundano entrecortado cada vez mais pelo digital.

A poética do Cotidiano

Na minha tese, explorei esse universo no diálogo (apaixonado, confesso) com De Certeau e sua poética do cotidiano, que trata do consumo como polo de produção, como busca desautorizada de sentidos. Nessa análise, construí o conceito de “gambiarra digital” e mais tarde sistematizei no artigo “Digital Dependency as a Burden“, com meu colega Alfonso Otaegi, o modo como pessoas idosas no Brasil e no Chile adotavam smartphones e como o jeito de cada um dar conta dos desafios que a vida lhes apresenta era um percurso imprevisível, criativo e ético.

Se fosse refazer esse percurso, provavelmente o faria à luz também da ideia de Repertórios Digitais. Isso porque o conceito atinge seu momento mais robusto para estudo da interface tecnologia e envelhecimento com o livro “Digital Repertoires: Embedded and everyday technologies in later life”, editado por Riitta HänninenSakari Taipale e Laura Haapio-Kirk.

Mas o que são Repertórios Digitais?

Trata-se de um ferramental socio-técnico que permite inferir por que e como as pessoas idosas se apropriam e domesticam a tecnologia digital em uma combinação única e em constante evolução que, para além de habilidades digitais, refletem hábitos, escolhas conscientes, interesses pessoais, redes de apoio e recursos disponíveis traduzidos em práticas cotidianas que não se dão descoladas de dinâmicas de poder, normas culturais e contextos individuais.

Para decisores desenhando políticas digitais para pessoas idosas, fortemente recomendo a leitura do capítulo 2, de Loredana Ivan. A autora critica a definição de habilidades digitais e sua construção hegemônica, apontando sua ineficácia para diagnósticos, mensuração e nivelamento, especialmente de pessoas idosas. Apesar de reconhecer os avanços dos conceitos de literacia digital e do modelo de Habilidades Digitais para o Século XXI, a autora ressalta os Repertórios Digitais como abordagem metodológica capaz de capturar a dinâmica e a multiplicidade das práticas digitais, refletindo ainda a micro-socialidade das pessoas e oferecendo uma estrutura para compreender o comportamento digital que leva em conta o modelo de ajuste pessoa-ambiente.

Em co-autoria com Emilene Zitkus, fazemos uma pequena contribuição para o entendimento dos repertórios digitais no contexto brasileiro e da saúde com o capítulo: “Ageing in Digitalised Brazil: Using the ‘Brazilian way’ to Compensate for Lower Digital Skills”. Exploramos como pessoas idosas reinventam o jeitinho brasileiro a partir de uma rede informal de favores, agora acessível via WhatsApp, para acessarem informações e orientações de saúde. O livro “Digital Repertoires” tem a versão online aberta, disponível para download gratuito aqui.