No livro “Respect: The Formation of Character in An Age of Inequality”, Sennett propõe que o caráter seja cunhado e demonstrado socialmente de três formas, que credenciam aqueles que serão dignos de respeito ou não. A primeira é pelo desenvolvimento de habilidades e talentos (valorizamos quem usa os recursos que tem de forma eficiente). A segunda é pelo cuidado de si (em última instância, valorizamos quem se cuida para não ser um peso aos outros). A terceira é pela capacidade de retribuição para o outro, para a comunidade e para a própria sociedade (talvez a fonte mais “universal, atemporal e profunda” de estima por alguém, como aponta o autor).
Quero falar sobre a capacidade de se devolver algo à sociedade na velhice, mais especificamente do voluntariado na velhice.
Durante etnografia de 16 meses, pude observar como o trabalho de voluntários idosos organizava a rotina após a aposentadoria, além de promover a sociabilidade, conferir propósito e restituir o caráter enquanto cidadão trabalhador de São Paulo. Para aqueles sem aposentadoria e sem emprego, o voluntariado trazia os mesmos ganhos e alento, como testemunha Renato de 63 anos. Enquanto buscava recolocação profissional, ele se dedicou à montagem e manutenção de uma biblioteca de livros espíritas em uma comunidade carente para que as pessoas pudessem ter conforto através da leitura.
“Quando você está afastado do campo formal você está… vamos usar “no limbo”, que é exatamente um limbo. Quando você sai do mercado de trabalho, você deixa de ser produtivo e você começa a entrar nessa fase mais aguda, que é a fase de idoso e tal, praticamente você não tem muita…muito apoio, você não tem muito onde se apegar. Eu continuo, né?…buscando, desde então eu continuo na minha batalha aí pra buscar algo novo, criar algo novo, porque eu tenho algumas…algumas coisas comigo que é, o que eu vou fazer eu tenho que atingir o maior número de pessoas possíveis, e essas pessoas têm que ser… eu tenho que dividir. Eu não consigo fazer nada só para mim, porque…toda vez que eu caminho, ah!… eu olho o que tá no meu entorno. Eu olho o que tá no meu entorno, me incomodo. Me incomoda a situação dessas pessoas e, se eu não consigo auxiliar as pessoas…tá certo que eu não estou conseguindo me auxiliar…mas se eu conseguir me auxiliar e não conseguir auxiliar o entorno eu não vou estar completo […]. Eu acho que uma forma de você ser feliz é…passa por princípios, né?… E no nosso país essa história de princípios, a gente deixa muita margem. O respeito ao próximo, a camaradagem… mas essa camaradagem não é aquela coisa do favorecimento, né? É a troca, né? É aquela coisa, você tem um conhecimento, por que você não pode dividir comigo o que você sabe? De repente você não tem o que eu quero, mas você me oferecendo o que você pode talvez me auxilie e eu ofereço a você o que eu posso.
Mas quero trazer essa discussão para a perspectiva macro dos efeitos do voluntariado na velhice.
Em meu campo de pesquisa, o sucesso da agenda de Envelhecimento Ativo era consequência direta do voluntariado de pessoas idosas. Isso implica reconhecer que as pessoas idosas não são apenas recipientes de ações de voluntariado. Ao contrário, elas são também sujeitos. São elas que estavam à frente dos cursos e atividades ofertados aos 60+ e também por trás deles, desempenhando funções administrativas. Em outras palavras, eram as próprias pessoas idosas que estavam transformando a experiência de envelhecimento na cidade e contribuindo (retribuindo) para que seus pares, suas comunidades e sociedade vislumbrassem uma outra possibilidade de futuro para aqueles que envelhecem.
Isso já é muito, mas não é tudo. Os voluntários idosos da minha pesquisa também estavam atuando em hospitais, na formação técnica de jovens, no suporte a populações vulneráveis e como não falar do cuidado informal a parentes e vizinhos. Suas histórias ilustram uma potência global, parcialmente mensurada em levantamento do McKinsey Health Institute junto a 21 países, incluindo o Brasil.
A estimativa é que, nessa amostra, a população 55+ contribua com 73 bilhões de horas de voluntariado por ano.
Se fossem criadas oportunidades para responder à demanda não atendida dos 55+, estima-se um adicional de 103 bilhões de horas anuais. Agora contabilize os efeitos dessa contribuição para a saúde e você começa a deslumbrar o ciclo virtuoso gerado pela oportunidade de continuar contribuindo para a sociedade na velhice.
Se beneficiar ora como sujeito, ora como recipiente de retribuição. Esse balanço requer um ponto extra de atenção. Sennett já alerta que as três formas de demonstração de caráter são campo para desigualdades (se puder, leia o livro). Com relação ao voluntariado, é preciso atentar que a boa ação de um não vulnerabilize ainda mais o outro (é preciso reconhecer suas necessidades e vontades). Mais do que isso, é preciso criar políticas que garantam que a possibilidade de retribuição (enquanto forma de participação, conexão e dignidade) seja um direito de todos ao longo da vida.
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