Quando startups e empresas me procuram para conversar sobre as soluções digitais que estão desenvolvendo para o público 60+, a primeira pergunta que faço é: de que usuário idoso estamos falando? Não é só que a velhice seja heterogênea. Sua inclusão digital também é. O grau de escolaridade e a classe econômica definirão o grau de literacia midiática desse usuário e se ele será multidispositivos ou não. Seu arranjo familiar definirá se ele contará com suporte dos chamados “especialistas quentes” (filhos e parentes, principalmente) e sua localização dirá muito sobre a qualidade de sua conectividade.

Mas existe uma questão anterior: tem certeza de que o usuário idoso que vai se beneficiar de seu produto ou serviço (ou política pública) utiliza a internet? A pergunta pode parecer na contramão de todo o entusiasmo acerca da economia prateada, da promessa das AgeTechs e da digitalização de serviços. Infelizmente, não é.

A coletiva de imprensa que divulgou os resultados da TIC Domicílios 2022 mostrou que apenas 43% dos brasileiros com 60 anos ou mais são usuários de internet. Entre os 36 milhões de brasileiros sem acesso à rede, o grupo etário representa 18 milhões. Ressalto que esse dado não deve ser isolado de outras variáveis como classe social (18 milhões de não usuários são da classe DE) e grau de instrução (29 milhões de não usuários têm até o fundamental).

 

O fato é que temos um copo sobre a mesa.

Nós podemos brindar com a metade quase cheia. Ou podemos alertar sobre o vazio que representa a exclusão digital do grupo etário que mais cresce no Brasil. Essa exclusão é acima de tudo social, visto a acelerada digitalização de serviços que passam a mediar recursos fundamentais como o acesso à saúde. Tenho trabalhado com a Teoria da Vantagem Cumulativa (Cumulative Advantage Theory – CAT) para mensurar esse impacto, mas vou deixar essa análise para um outro post.

Neste, quero voltar à TIC Domicílios para comentar um outro dado que venho acompanhando ao longo da série história: o principal motivo declarado por brasileiros não usuários de internet para nunca terem acessado a rede. Entre o público com 60 anos ou mais, a falta de interesse foi crescente em 2018 (34%), 2019 (37%) e 2020 (42%), recuou em 2021 (32%) e atingiu 42% em 2022, sendo o motivo principal mais relevante em todos os anos.

 

Mas o que a pessoa idosa quer realmente dizer quando declara não ter interesse na internet?

Venho insistindo na necessidade de entender o que está por trás desse desinteresse – desafio que, na minha opinião, somente a pesquisa qualitativa pode acessar. Com base na etnografia de 16 meses que conduzi com idosos em São Paulo e na literatura científica com essa abordagem metodológica, aponto algumas entre muitas nuances possíveis para a falta de interesse declarada pela internet em geral ou por um aplicativo em particular:

1) Falta de interesse quer dizer falta de habilidade.
Declarar falta de interesse é menos embaraçoso do que reconhecer uma falta de habilidade. Essa falta de habilidade é agravada por discursos idadistas que tratam a pessoa idosa como incompetente e incapaz no âmbito digital. Essa construção contribui para o medo de confirmação de estereótipo nesse campo digital, que pode levar pessoas idosas à subutilização, abandono ou aversão a novas tecnologias.

2) Falta de interesse quer dizer falta de suporte.
Declarar falta de interesse pode ser uma estratégia para evitar conflitos com os filhos. Sem paciência ou sem tempo, os filhos deixam de exercer a função de “especialistas quentes” (devido ao vínculo afetivo) na facilitação de adoção de tecnologia. Além disso, a tecnologia pode ser mobilizada na disputa de poder entre as gerações, quando a tecnologia confere autoridade ao filho e a posse da casa, ao pai. O primeiro caso é ilustrado na fala de uma das participantes da minha pesquisa: “Não adianta perguntar para familiar. É que nem autoescola, você tem que ir para a escola”.

3) Falta de interesse pode quer dizer falta de recursos.
Durante toda minha pesquisa de campo, fui voluntária como professora e assistente em cursos de Smartphone e WhatsApp dirigidos a pessoas idosas. A maioria dos alunos possuía um dispositivo herdado, de segunda mão, com problemas de bateria e memória, que dificultavam o aprendizado. Além disso, há a questão do acesso a pacote de dados e qualidade de sinal. Vale ressaltar que problemas do dispositivo e de conexão são muitas vezes interiorizados como falhas pessoais pelo usuário idoso, podendo resultar na perda de interesse e abandono da tecnologia.

4) Falta de interesse quer dizer falta de segurança.
É cada vez mais frequente nos grupos de WhatsApp que acompanho os alardes sobre golpes digitais contra as pessoas idosas. E não é para menos: o grupo etário é alvo preferencial dos golpistas. Isso torna o ambiente digital ameaçador e pode resultar em desinteresse. Como um dos participantes da minha pesquisa resumiu: “se você tem cabelo branco, já é um alvo”.

5) Falta de interesse quer dizer falta de necessidade.
Um dos achados do livro “The Global Smartphone”, do qual sou co-autora, é de que os aplicativos são distribuídos entre a família nuclear e de acordo com as tarefas atribuídas a cada um de seus membros. Às vezes, a falta de interesse em um aplicativo de banco pelo pai reflete o fato de a administração das finanças da casa ficarem a cargo da mãe. Isso significa que adotar um aplicativo de banco não é uma necessidade para ele, daí seu desinteresse.

6) Falta de interesse quer dizer falta de familiaridade.
Entre os participantes da minha pesquisa, observei que muitos fazem uso do que chamei de “gambiarra”. Eles preferem combinar diversas funcionalidades de aplicativos que conhecem do que adotar um novo aplicativo, mesmo que este resolva sozinho determinado problema. É o caso dos participantes que combinam o alarme e o bloco de notas para se lembrar dos compromissos porque não possuem familiaridade com o aplicativo Calendário ou Agenda.

7) Falta de interesse quer dizer falta de benefícios, ou melhor, perda de reputação.
A tecnologia às vezes torna obsoletas habilidades adquiridas ao longo da vida que trazem autoestima para a pessoa idosa. É o caso do participante da minha pesquisa que se recusa a utilizar o Google Maps ou Waze porque tem orgulho de ter memorizado todas as ruas de São Paulo.

 

Por fim, falta de interesse também pode significar uma deliberação ética.

Conhecida como “desconexão” ou “detox digital”, a tendência deve ser vista como ponderação pessoal sobre o uso de tecnologias no dia a dia e o que ela representa em termos de felicidade, vida boa e bem comum. Em outras palavras, na perspectiva aristotélica, trata-se da busca da justa medida entre uma falta e um excesso. Mas essa busca comporta uma escolha. Ou seja, para se optar pela desconexão, a conexão deve ser uma alternativa possível. Essa perspectiva não comporta o hiato digital como ainda vivenciado no Brasil, tanto em termos de acesso, quanto em termos de habilidades digitais. E é esse hiato que comporta o vazio que inviabiliza a participação cidadã, o consumo e, em última instância, a ética.

 

 

[Imagem: @tudointeressante]