“Gente, 40 anos, não pode mais fazer faculdade”. Desde o dia 10 de março, o caso das três meninas de Bauru, calouras de Biomedicina da Universidade Unisagrado de Bauru, ganhou as redes como flagrante de idadismo, preconceito relacionado à idade e equivalente ao machismo ou à homofobia. Idadismo é preconceito, é certo. É um desserviço à sociedade brasileira, uma das que envelhece em ritmo mais acelerado em todo o mundo.


Esse texto trata de como uma forma de violência (o idadismo) foi tratada com outra forma de violência: a midiática.

Proponho essa discussão na interface com a Cultura do Cancelamento e o campo da Moral, ressaltando o modus operandi do mecanismo de estigma, que identifico como ponto de contato entre um e outra. O estigma é, antes de mais nada, um mecanismo de economia (Goffman, 1986). Para sabermos como reagir, e prontamente, fazemos uma rápida leitura do outro e o classificamos de acordo com nossas referências, isto é, de acordo com aquilo que em nossa cultura nos é ensinado como bom ou como ruim, como conduta ou mesmo traço físico passível de reprovação. A ação das meninas foi motivado por um estigma, o estigma de que o velho é apenas velho e que a ele cabe apenas a reclusão ao aposento, origem do termo aposentado. Mas essa estigmatização da colega de classe mais velha não é só delas: é nossa enquanto sociedade.

Se três meninas se autorizaram a zombar dessa colega mais velha, é porque nossa sociedade se estrutura com as condições necessárias para que elas possam agir dessa maneira. Vale lembrar que apenas a partir da década de oitenta a representação da velhice como feita por meios de comunicação e campanhas de publicidade começou a mudar. A representação do velho como aquele frágil, inútil e dependente vem sendo substituída desde então pela imagem do velho ativo, saudável, produtivo e autônomo. E esse movimento não é puramente justiça. A mudança se dá quando o mercado reconhece o potencial de consumo desse velho e quando passa a ser fundamental para as políticas públicas que essa pessoa idosa se mantenha autônoma e independente, tanto em termos de saúde quanto economicamente. Não se engane. Essa nova representação também é violenta porque opera na moralização de um jeito correto de envelhecer. Isso pode ser irreal, considerando-se que a velhice é heterogênea. Isso pode ser injusto se resultar na construção de uma velhice baseada na força de vontade e na meritocracia apenas, apagando assim os impactos das desigualdades sociais ao longo da vida e que vão definir fortemente a experiência de envelhecimento de cada um.

De novo, não estou amenizando a ação das meninas, de forma alguma. Mas estou chamando novamente a atenção para o combate de uma violência estigmatizante com outra violência estigmatizante. Quando tiverem 90 anos, o dobro da idade da colega de que zombaram, qualquer busca no Google ou em algum Chat GPT vai recuperar e reavivar a história. Isso significa que daqui até a velhice ou fim da vida, elas também seguirão vítimas de estigma. Por quê? Primeiro porque essa é a natureza do estigma. Um traço reprovável socialmente é identificado e contamina toda a identidade do sujeito. Segundo porque as redes sociais com suas caraterísticas de persistência e buscabilidade permitirão seu resgate e atualização. Talvez elas já sejam avós, ou bisavós, mas na internet serão apenas as universitárias de Bauru. Isso também é uma forma de violência, porque o estigma é antes de tudo um ato violento.


E o estigma é um mecanismo perigoso, facilitado pelas redes sociais e acionado pela cultura do cancelamento.

A cultura do cancelamento é uma reação a uma ação de um ator social considerada inadequada ou imoral pela sociedade ou por um grupo da sociedade (Carr, 2020). Nesse contexto midiático e conectado, o delito é tratado como prova e a exposição do flagrante já funciona como sentença (Padilha, 2019). No âmbito online, a execução da sentença é a retirada massiva de seguidores e fãs das redes sociais do infrator, seja ele marca, celebridade ou influenciador – o que resulta em perda de capital social em termos de reputação, credibilidade, popularidade e, potencialmente, em termos financeiros. Nesse sentido, as audiências (conectadas) se constituem como instância ética e pseudojurídica.

A moral implicada na cultura do cancelamento resulta em uma vigilância que é também participativa (Bruno, 2013), na qual todos e tudo podem ser objetos de flagrante e de escrutínio. Domingues (2013) sugere que o foro da internet se constitua como uma “delegacia”, onde flagrante, julgamento e sentença são instantâneos graças às facilidades da Web 2.0. Rufino e Segurado (2022) mobilizam a noção de “grande tribunal”, segundo a qual os usuários da internet se empregam arduamente no trabalho de supervisão do outro, cujo controle resulta na adequação ou homogeneização de condutas. E Bittencourt (2021) retoma o recurso do “ostracismo” para construir um paralelo entre cultura do cancelamento e a imposição de exílio a rivais políticos, com sua retirada do convívio social.

Pela última vez, não estou amenizando a violência das meninas. Mas não vi igual repercussão com a campanha do chocolate Bis com a queda dos idosos. E não se trata só da publicidade. Um artigo da pesquisadora Salazar Norambuena (2021) analisou a representação e discursos do Ministério da Saúde do Chile durante a pandemia da COVID-19, quando os idosos foram tratados como um grupo homogêneo, fragilizado e dependente da sociedade.


Afinal, há espaço para aprender com os erros?

Mas no caso das meninas, a exposição midiática foi outra, cuja visibilidade opera na simplificação tratada por Morin (2007, p. 55-56) como uma “moralina de indignação” que desqualifica o outro e alimenta a “moralina da redução”. A “moralina de redução” diz respeito à condenação completa do sujeito por seus maus atos, desconsiderando que esses atos são apenas parte do sujeito e excluindo a possibilidade de evolução e arrependimento.

É essa possibilidade de evolução e arrependimento que o estigma, via exposição midiática, inviabiliza. Isso é grave porque não existe evolução sem o erro. Não seremos uma sociedade livre do idadismo se não formos reeducados para isso; se não aprendermos, errando no conflito com os discursos e representações circulantes até hoje, que o idadismo é inaceitável. E se não há espaço (inclusive o midiático) para o arrependimento, não somos mais jovens, nem velhos: não somos mais humanos.

 

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity

 

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Referências:

BITTENCOURT, R. N. Moralidade líquida, lacração e cultura do cancelamento. Cadernos Zygmunt Bauman, v. 11, n. 27, p. 212-229, 2021.
BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013
CARR, N. K. How Can We End #CancelCulture – Tort Liability or Thumper’s Liability or Thumper’s Rule?. Catholic University Journal of Law and Technology, v. 28, n. 2, p. 133-146, 2020.
DOMINGUES, I. Terrorismo de marca: publicidade, discurso e consumerismo político na rede. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2013.
GOFFMAN, E. Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. [S.l.]: Penguin, 1986.
MORIN, E. O Método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2007.
PADILLA, N. “Cancel Culture” Should be Cancelled. Bottom Line, 23 maio 2019. Disponível em: <https://thebottomline.as.ucsb.edu/2019/05/cancel-culture-should-be-cancelled>.
RUFINO, M.; SEGURADO, R. Cultura do cancelamento: uma análise de Karol Conká no BBB 21. PragMATIZES, ano 12, n. 12, p. 616-640, mar. 2022.
SALAZAR NORAMBUENA, C. COVID-19 y Personas mayores: representaciones sociales en el Ministerio de Salud de Chile. Anthropologica, v. 39, n. 47, p. 221–244, 29 dez. 2021.
SILVA, A. C. G. et al. Discussões conceituais sobre a cultura do cancelamento. Journal of Research in Humanities and Social Science, v. 9, n. 7, p. 67-74, 2021.
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