Considero que a maior contribuição da minha tese, construída a partir de 16 meses de pesquisa de campo com pessoas idosas em São Paulo, é dar visibilidade à experiência do envelhecimento ou às táticas empregadas pelos sujeitos para envelhecer em uma dada cultura e o modo como dão sentido, na prática, a políticas, discursos e moralidades. Em outras palavras, trato de uma “poética do cotidiano”, como propõe De Certeau, que celebra aquilo que se pode e se quer fazer (e se faz) com aquilo que se desenha como dever.

Por que estou falando disso agora?

No dia 5 de Outubro, a Folha de S. Paulo publicou o artigo de opinião “Política Nacional de Cuidados não pode cair no familismo”. Nele, Guita Grin Debert e Jorge Félix alertam para o crescimento da responsabilização da família pelo cuidado de pessoas idosas em substituição ao Estado nas políticas públicas em governos neoliberais. Eles apontam como as mudanças demográficas e para a desestruturação da família tradicional devem ser consideradas como desafios para a elaboração da Política Nacional de Cuidados e fazem uma importante distinção entre o que, nas políticas anteriores, visa aqueles com autonomia (os “jovens idosos”) e aqueles que apresentam alguma dependência (o que os participantes da minha pesquisa chama de “velhos-velhos”).

Minha pesquisa ilustra como pessoas idosas passam a assumir os cuidados com os pais, tanto em termos de abandono, quanto em termos de sobrecarga.  A matemática foi precisa. Filhos que consideram que tiveram bons pais tendem a assumir esse cuidado como um dever, um modo de retribuição, tal qual conceituado como pacto de reciprocidade geracional por Whyte no epílogo do livro “Successful Aging as a Contemporary Obsession”. Mas aqueles que consideram que foram alvo de violência ou abandono, tendem a se afastar dessa obrigatoriedade. Mesmo entre irmãos, aquele identificado como o “preferido” pelos pais recebe pressão para que acumule maiores responsabilidades.

Além disso, há ainda o sobrepeso para as mulheres.

Mulheres são tradicionalmente identificadas na cultura brasileira como “cuidadoras naturais” da família. Mas essa não é uma realidade só nossa. Como mostra artigo publicado no NY Times já em 2017, os cuidados com os filhos não são a única razão pela qual mulheres com alto grau de educação deixam a força de trabalho. Com o envelhecimento populacional, essas mulheres abdicam de suas carreiras também para assumir o trabalho não remunerado de cuidadoras dos pais. Na ausência de políticas corporativas que reconheçam e respaldem esse trabalho, uma alternativa é contar com o apoio de chefes e colegas, em “acordos informais” que viabilizem essa dupla jornada, como discutido no livro “Women, Work and Care of the Elderly”.

As falas das participantes da minha pesquisa dão voz a esses desafios.

Eu até falei para o meu pai brincando: reza para eu ter bastante saúde, porque se acontecer alguma coisa comigo você está perdido. O que eles vão fazer? Colocar num asilo? Eu não sei o que vão fazer, agora assumir não vão” – Mulher, 57 anos, irmã mais velha, cuidadora do pai com Parkinson.

Eu tinha estabilidade, mas não achava correto ficar faltando, e também não queria que ninguém pensasse que eu era folgada” – Mulher, 64 anos, que se aposentou como funcionária pública para cuidar dos pais idosos.

Eu não tinha dinheiro para o táxi, caso houvesse alguma emergência. Então consegui uma cadeira de rodas. Se minha mãe precisava ir para o pronto-atendimento, eu empurrava a cadeira pelo quarteirão até chegar ao hospital” – Mulher, 70 anos, que contou com o apoio do chefe para conciliar trabalho e cuidado com os pais idosos.

 

Para além desses, há ainda as pessoas idosas que vão envelhecer sem filhos, ou com filhos morando longe (uma delas riu e me respondeu “Deus”, quando perguntei quem cuidaria dela na velhice), e aquelas que desacreditam que os filhos assumirão esses cuidados. Em um discurso resiliente, estas tendem a dizer que “os tempos são outros” e interiorizam a obrigação de cuidarem de si mesmas, bem em linha com o neoliberalismo de que tratam Debert e Félix. É para esses novos tempos portanto que as políticas devem ser desenhadas de forma que não deixem os cuidadores idosos sobrecarregados, nem as pessoas idosas que precisam de cuidado em situação de abandono.